O saudável funcionamento do SUS é fundamental para o Brasil resolver o desafio COVID19 nos próximos meses
Para falar desse tópico convido o Dr. Daniel Dourado, médico e advogado, sócio-fundador da HealthTech & Society, um centro de reflexão e pesquisa independente que tem a missão de promover o debate e a produção de conhecimento na interseção entre as áreas de Direito, Saúde e Tecnologia. Ele nos conta:
No momento em que a epidemia do Coronavírus Covid19 ganha escala global (e tudo indica que os casos no Brasil devem aumentar consideravelmente nas próximas semanas) é importante chamar a atenção para a crise de financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS.
Na emergência de uma epidemia, a existência de um sistema público de saúde é essencial para que sejam adotadas medidas de controle de transmissão e tratamento aos doentes. Quanto mais abrangente é esse sistema, mais efetivas são essas medidas. Essa é uma das finalidades dos sistemas chamados universais.
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Os sistemas universais são modelos de proteção social que atendem todas as pessoas de uma determinada abrangência (país), independente de renda, capacidade contributiva (se pagam ou não impostos) e de inserção formal no mercado de trabalho. São públicos, geridos pelos governos e financiados por impostos.
O Brasil adota um sistema do tipo universal, também chamado de seguridade social, que é o termo adotado pela Constituição de 1988 para designar as redes de proteção de saúde, previdência e assistência social. Por isso se diz que saúde é direito social (de todos) no país.
O SUS é a instituição criada para garantir o direito à saúde no Brasil. Como toda política pública, uma das bases para sua consolidação é a existência de recursos financeiros. O financiamento do SUS é complexo e envolve fontes dos municípios, dos estados e do governo federal.
Os gastos públicos em saúde no Brasil são historicamente baixos, se comparados com países na mesma faixa de renda e com países que adotam sistemas universais. O valor anual em saúde no país é baixo tanto per capita como considerando a proporção do Produto Interno Bruto – PIB. (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50329522)
Por isso, para se obter estabilidade no financiamento do SUS, desde o ano 2000, foram estabelecidos pisos de gastos com saúde para a o governo federal, os estaduais e os municipais. Para estados e municípios, fixados em percentuais da arrecadação de impostos, que têm sido cumpridos.
Por isso, estados e municípios contribuem para o financiamento do SUS, em regra, conforme suas capacidades, de acordo com essas obrigações constitucionais. O problema do financiamento do SUS é que até hoje não se conseguiu uma base adequada de financiamento federal.
Esse problema é crônico, pois o SUS nunca chegou a ter acesso a uma receita adequada (per capita e como percentual do PIB), já que o governo federal, no Brasil, é o que tem a maior base de arrecadação. E dele que devem vir os recursos que faltam para consolidar o sistema universal.
E esse problema tem sido agravado desde 2017, pelo chamado novo regime fiscal (regra do teto de gastos). Apesar do nome, esse regime não cria um teto específico para gastos em saúde, mas mudou o cálculo do piso para o governo federal, que passou a ser corrigido pela inflação.
E a variação da inflação não tem nenhuma relação com as necessidades de saúde pública. É por isso que é fundamental existir um piso que garanta o mínimo necessário para a manutenção de um sistema público universal. E a definição de piso de gastos em saúde pela variação da inflação não tem como assegurar esse mínimo necessário pois os gastos em saúde aumentam por uma lógica diferente dos índices de inflação (embora sejam naturalmente influenciados por eles).
Por exemplo: o SUS precisa dar conta da transição demográfica (população envelhecendo, usa mais a rede de saúde) e epidemiológica (mais doenças crônicas e degenerativas, que demandam mais tempo de assistência). Esses fatores determinam gastos crescentes sem relação direta com a inflação.
Além disso, a incorporação de tecnologias encarece o sistema de saúde, principalmente porque a maior parte da inovação na saúde (como equipamentos e medicamentos) não é produzida no país (existe uma janela de oportunidade na entrada da IA na saúde, tema para um outro texto).
Por isso é essencial a atenção para o problema criado pela regra atual.
O fato de não ter um teto para saúde não garante que haverá o mínimo de recursos necessários para o SUS. A discussão precisa ser feita pelo piso, para que o SUS não seja desfinanciado nos próximos anos.
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Voltando à epidemia de Covid-19. Em momentos como esse, ter um sistema sem barreira de acesso (universal) é essencial para o controle da doença: vigilância epidemiológica, tratamento do maior número possível de pessoas, vacinas gratuitas (quando disponíveis).
O exemplo dos EUA mostra (pelo lado negativo) a dificuldade de lidar com uma epidemia na ausência de uma rede de proteção social. (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51746841)
Nos EUA não há um sistema público de saúde universal, por isso, muitos possíveis infectados pelo Covid-19 sequer buscam tratamento ou se submetem ao exame para confirmar a infecção, por não terem recursos para pagá-los (já que não têm direito a exame nem tratamento de graça).
Além disso, como não há seguridade social, também não existe um sistema público de previdência. Ou seja, não há licença remunerada obrigatória (os empregadores decidem se dão ou não). Daí porque muitos vão trabalhar, mesmo doentes. Se faltarem, perdem remuneração é podem até ser demitidos.
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Em suma, há muitos motivos para que os brasileiros defendam o SUS e a seguridade social como um todo. Uma epidemia como a do Covid-19 evidencia a importância de termos garantidos esses direitos de cidadania.
E é importante para todos, mesmo para quem não usa a rede assistencial do SUS (porque usa o SUS de outras formas, pela vigilância e pelas vacinas, p.ex.). Ter um sistema de seguridade é essencial para buscar o equilíbrio social, principalmente num país tão desigual como o Brasil.
Finalmente, o meio mais eficaz de defender o SUS atualmente é chamar a atenção para a necessidade de revisão do modelo atual de financiamento. Ou seja, usar os meios disponíveis para pressionar por uma mudança no cálculo do piso estabelecido pelo novo regime fiscal.
Declaração de conflitos de interesse: tenho uma filha pequena, esse projeto é dedicado a ela.
As opiniões aqui veiculadas representam a opinião de Daniel Dourado e são endossadas por mim.
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
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