Quando o conhecimento metodológico ajuda a desfazer "paradoxos"
Sabe-se a partir de ensaios clínicos randomizados (ECRs) realizados na população com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) que o uso de corticóides inalados, tanto isolados ou associados a broncodilatadores , está associado a um maior risco de desenvolver pneumonia com o IC95% do Risco Relativo girando em torno de 2 (quer dizer: duas vezes mais risco de pneumonia com o uso de corticóide inalado) [1-7]. Além disso há evidência de que o uso dos corticóides inalados também aumenta a mortalidade por ocasião dessa pneumonia com Risco Relativo 1.50 IC95% 0.85 - 2.67) [8]
Enquanto os Ensaios Clínicos Randomizados mostram um maior aumento de risco de pneumonia e morte por pneumonia nos pacientes com DPOC em uso de corticóide inalatório, vários estudos observacionais, ao contrário, mostram que o uso de corticóide inalatório prévio a um episódio de pneumonia protege de morte por pneumonia [9 -11]. Como explicar essa contradição?
Como explicar esses resultados?
No artigo publicado agora em 2019 no European Respiratory Journal [12], Suissa et al discutem esse resultados à luz da pesquisa científica e seus métodos.
Vejam se vocês conseguem identificar onde está o "pulo do gato":
Estudos observacionais que apontaram o uso de corticóide inalatório prévio como fator protetor para morte por pneumonia em DPOCs foram conduzidos da seguinte forma: Pacientes com DPOC hospitalizados por pneumonia eram identificados. A partir desse momento, o uso prévio à admissão de corticóide inalado era analisado. Geralmente, aqueles expostos a corticóide inalatório (casos) tinham menor mortalidade que aqueles não-expostos (controle) [9-11]
E aí?
O "pulo do gato" está no seguinte: o recrutamento de pacientes está sendo feito no momento em que o paciente interna para pneumonia! Explico: já sabemos que o corticóide inalatório aumenta o risco de pneumonia em DPOCs, então, numa coorte de pacientes DPOCs hospitalizados com pneumonia, aqueles pacientes que não estavam expostos ao corticóide inalado (exposição), tinham outros fatores de risco para pneumonia (por exemplo: alcolismo, perfil genético etc). E um viés de seleção é introduzido se esses outros fatores de risco para pneumonia também são fatores de risco para o desfecho em questão: morte. O viés surge porque pacientes internados por pneumonia terão mais desses outros fatores de risco e eles por eles mesmos aumentam a chance de morte. [12]
Imagine o seguinte: assumindo que metade da incidência de pneumonia nos expostos ao corticóide inalado seja de fato atribuído ao corticóide inalado, a outra metade, apesar de exposta a corticóide inalado teve pneumonia facilitada por outros mecanismos (aqueles, relacionado com maior risco de morte, vide acima). Já no grupo controle, que foram os pacientes internados com pneumonia não expostos ao corticóide inalatório, todos desenvolveram pneumonia por outros mecanismos que por eles mesmos aumentam a chance de morte, causando uma falsa impressão protetora do uso de corticóide inalado (figura 1).
Existem algumas formas de controlar essas variáveis confundidoras no design observacional. Mais pra frente eu vou falar delas em outros posts mas por hora quero propor uma outra ideia de solução que é randomizar os pacientes:
Imagine que para esclarecer essa dúvida decidimos randomizar (alocar de forma aleatória) pacientes com DPOC para receber corticóide inalatório (grupo intervenção) ou não (grupo controle) e ficamos um ano observando os episódios de pneumonia nos dois grupos. A randomização remove completamente o viés de seleção, porque? Porque agora as características desconhecidas que aumentam o risco de pneumonia e óbito foram provavelmente distribuídas de forma igualitária entre os grupos (a partir de um determinado tamanho amostral, certeza que não já não há desbalanços ocorridos ao acaso), e dessa forma conseguimos isolar apenas a o efeito do corticóide inalado sobre risco de pneumonia e morte, que é o começo desse post: os ECRs mostraram que o corticóide inalado aumenta o risco de pneumonia e morte [1-7]
Deu para entender? Comentários são bem-vindos!
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
1 Ernst P, Saad N, Suissa S. Inhaled corticosteroids in COPD: the clinical evidence. Eur Respir J 2015; 45: 525–537.
2 Calverley PM, Anderson JA, Celli B, et al. Salmeterol and fluticasone propionate and survival in chronic
obstructive pulmonary disease. N Engl J Med 2007; 356: 775–789.
3 Crim C, Calverley PM, Anderson JA, et al. Pneumonia risk in COPD patients receiving inhaled corticosteroids
alone or in combination: TORCH study results. Eur Respir J 2009; 34: 641–647.
4 Wedzicha JA, Calverley PM, Seemungal TA, et al. The prevention of chronic obstructive pulmonary disease
exacerbations by salmeterol/fluticasone propionate or tiotropium bromide. Am J Respir Crit Care Med 2008; 177:
19–26.
5 Calverley PM, Stockley RA, Seemungal TA, et al. Reported pneumonia in patients with COPD: findings from the
INSPIRE study. Chest 2011; 139: 505–512.
6 Ferguson GT, Anzueto A, Fei R, et al. Effect of fluticasone propionate/salmeterol (250/50 microg) or salmeterol
(50 microg) on COPD exacerbations. Respir Med 2008; 102: 1099–1108.
7 Anzueto A, Ferguson GT, Feldman G, et al. Effect of fluticasone propionate/salmeterol (250/50) on COPD
exacerbations and impact on patient outcomes. COPD 2009; 6: 320–329.
8 Festic E, Bansal V, Gupta E, et al. Association of inhaled corticosteroids with incident pneumonia and mortality in
copd patients; systematic review and meta-analysis. COPD 2016; 13: 312–326.
9 Joo MJ, Au DH, Fitzgibbon ML, et al. Inhaled corticosteroids and risk of pneumonia in newly diagnosed COPD.
Respir Med 2010; 104: 246–252.
10 Malo de Molina R, Mortensen EM, Restrepo MI, et al. Inhaled corticosteroid use is associated with lower
mortality for subjects with COPD and hospitalised with pneumonia. Eur Respir J 2010; 36: 751–757.
11 Chen D, Restrepo MI, Fine MJ, et al. Observational study of inhaled corticosteroids on outcomes for COPD
patients with pneumonia. Am J Respir Crit Care Med 2011; 184: 312–316.
12. Suissa S. Inhaled corticosteroids preventing pneumonia mortality: paradox or selection
bias? Eur Respir J 2019; 53: 1802112
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