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Writer's pictureLetícia Kawano-Dourado

Game of Thrones: análise de sobrevida

E reflexões sobre a Violência na espécie H. sapiens


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Em uma curiosa pesquisa científica :"Death is certain, the time is not": mortality and survival in Game of Thrones (GoT)", foi feita uma análise de sobrevida dos personagens do seriado Game of Thrones, episódios 1 a 7.


Os pesquisadores assistiram o boxset com os 67 episódios de GoT e contabilizaram o tempo entre a primeira aparição de um personagem e sua morte. Várias variáveis ​​sociodemográficas foram registradas para cada personagem: por ex. sexo, status social, tipo de ocupação, afiliação religiosa e lealdade. No que diz respeito para o status social, os personagens que eram senhores, senhoras ou filhos legítimos eram classificados como "highborn", enquanto todos os outros personagens foram classificados como "lowborn".


Um escore para classificar o quão proeminente um personagem era no show foi criado. As pontuações de proeminência foram então categorizadas em tercis (ou seja, alta, média e baixa).


A partir daí os pesquisadores aferiram a sobrevida dos personagens estratificando por variáveis consideradas chaves A. sexo, B. status social, C.troca de "partido" D. Proeminência do personagem:





Depois corrigiram as probabilidades de sobrevida no modelo de Cox, incorporando todas as variáveis pré-especificadas:



No eixo X: O odds ratio (OR). Note que um OR de 1 (ou que seu IC95% cruza o 1) evidencia que a variável não influencia a sobrevida. Proeminência média e alta estiveram associadas com maior chance de morte precoce e troca de "partido"com menor chance de morte precoce

Comentários sobre a série Game of Thrones: Ao final do 7o episódio, 56% dos personagens haviam morrido. 73% das mortes foram mortes traumáticas, em particular devido a lesões na cabeça e pescoço. A análise estratificada mostrou que a sobrevida mediana foi significativamente mais curta para homens, para "lowborns" (sem título de nobreza), para aqueles que não "trocaram de partido" ao longo da trama e para aqueles personagens de proeminência baixa e alta.



O alto grau de violência da série GoT não é desconhecida da espécie humana. Há evidencia arqueológica de que na pré-história, até 15% das mortes humanas eram mortes violentas enquanto que evidências etnográficas indicam que a proporção de mortes violentas chegava a 25% em sociedades antes do surgimento dos Estados-Nação. Na Europa a taxa de homicídios por 100.000 habitantes, que já foi de 40 na Idade Média, declinou para 10 no século 18 até chegar em 3 homicídios por 100.000 habitantes nos dias de hoje! Quer dizer, há muito espaço para prevenção de mortes por homicídios na série GoT! Muitos fatores tem papel central na violência humana, alguns dos mais importantes:

1. A emergência dos Estados-Nações com o monopólio do uso da força/violência (Steven Pinker, 2011)

2. Processo civilizatório onde territórios feudais foram consolidados em reinados com autoridade centralizada e infraestrutura para o desenvolvimento do comércio (Steven Pinker, 2011)

3. Aumenta a importância do comércio: quer dizer, o diferente (a tribo "rival") passa a ter mais valor viva do que morta, dada a possibilidade de venda e compra (Steven Pinker, 2011)

4. A preocupação crescente com bem-estar faz surgir instituições públicas que oferecem serviços para o grupamento

5. O crescimento da racionalidade na solução de problemas e tomada de decisão (Steven Pinker, 2018).



Pinturas em caverna mostrando batalhas entre tribos - em Tadrart Acacus, região da Libia datada em 12,000 AC a 100 AC

Percebam o que falta em GoT para que a violência vista na série se reduza: Não há Estados-Nações ainda! Apesar dos territórios feudais de Westeros terem coalescido em 7 reinados (sujeitando todos à autoridade do Iron Throne), a estrutura política do reinado é claramente instável: a legitimidade da autoridade do Estado é questionada e as leis são inefetivas. Notem também que o processo civilizatório está em curso mas ainda incipiente (por exemplo a ideia de abolir a escravidão ainda não é acolhida por todos). Clara ênfase à Guerra em vez do comércio. Faltam instituições para prover bem-estar: Hospitais, Escolas etc. Finalmente a razão não aparenta (ainda) ter um papel importante...


Nos faz refletir sobre os desafios modernos não?



Comentários Metodológicos sobre as análises de sobrevida:

O especial da análise de sobrevida é que ela integra a informação disponível de cada paciente, assumindo que naturalmente os pacientes terão diferentes tempos de sobrevida seja porque atingiram o desfecho (ex. óbito) ou porque foram censurados. Nessas duas situações temos que o sujeito contribui com informação até o momento do desfecho ou até o momento da sua saída do estudo (censura). A censura torna a análise de sobrevida diferente. A partir dos vários tempos de sobrevida de cada paciente, o método de Kaplan-Meier (o mais comumente utilizado) é capaz de gerar uma curva de sobrevida baseada na probabilidade de sobreviver a “t” ou mais intervalos de tempo desde a entrada no estudo, essa probabilidade depende do paciente necessariamente ter sobrevivido a todos os intervalos de tempo anteriores àquele (t).

Desse modo, constrói-se a tradicional curva de Kaplan-Meier onde os degraus representam desfechos (óbitos) e os tracinhos na Linha representam observações censuradas. Nesse gráfico também podemos apontar a sobrevida mediana 0.5, quer dizer o ponto onde 50% da amostra ainda se encontra viva.

Curva de Kaplan-Meier. No eixo X o tempo, no eixo Y temos probabilidade de sobrevida. A probabilidade de sobrevida de 0.5 marca a sobrevida mediana :quando 50% da amostra ainda não apresentou o desfecho

Após a geração das curvas de Kaplan-Meier, podemos querer comparar duas curvas, certo? por exemplo, a curva de pacientes que receberam o tratamento 1 versus aqueles que receberam o tratamento 2. Para fazer essa comparação habitualmente usamos o teste de Log-rank. Simplificadamente, o teste de Log-rank tem como hipótese que não há diferenças entre as curvas e para confirmar ou refutar essa hipótese ele compara a proporção de desfechos (ex. óbito) observados em relação aos desfechos esperados para cada grupo, para mais detalhes sugiro Bewick V et al.



Comparando duas curvas de Kaplan-Meier. Em geral essa comparação se faz com o teste de log-rank

Suponhamos que o teste de log-rank tenha identificado uma diferença entre as duas curvas de Kaplan-Meier entre o grupo que recebeu o tratamento 1 e 2, mas e daí? Significa que a causa da diferença é o tratamento? E se os dois grupos tiverem diferenças significativas em idade ou em alguma outra comorbidade? Como verificar se essas covariaveis (idade, comorbidade etc) são as responsáveis pela diferença em sobrevida ou se de fato é o tratamento em questão? Para isso temos o modelo de Cox (proportional hazards) que é análogo a um modelo de regressão múltipla. A informação derivada do modelo de Cox é o Hazard Ratio (HR) que simplificadamente falando é um tipo de odds, ou seja fala de quantas vezes mais chance tem um paciente alocado para o tratamento 1 de ter o seu tempo até o desfecho encurtado se comparado ao tratamento 2: notem que o HR não informa sobre magnitude (quão mais rápido o desfecho vai chegar). Para se ter noção de magnitude de efeito convém obter a razão entre a sobrevida mediana entre os grupos, por exemplo.


Outra leitura sobre análises de sobrevida: esse aqui que o Doug Altman é autor! Mas esse assunto é tão importante que aos interessados a entenderem melhor suas limitações, suas assumptions, e como aplicá-lo, sugiro livros e/ou cursos sobre o assunto!


Declaração de conflito de interesse: nenhum


Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado


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