Comentário crítico sobre o artigo de revisão recentemente publicado em um dos mais importantes jornais médicos.
No final de dezembro de 2019 saiu no New England Journal of Medicine, um artigo (DOI: 10.1056/NEJMra1905136 ) de revisão sobre Jejum Intermitente. Spoiler: O artigo causou um certo frisson na comunidade científica pois, tendo em vista o considerável grau de incerteza (ainda) sobre o assunto, um artigo de revisão no NEJM tem peso demais para pouca evidência clínica.
Porque afirmo que há considerável grau de incerteza no assunto? Por que as evidências mais abundantes sobre o jejum intermitente são em modelos pré-clinicos (em animais) e em estudos com desfechos substitutos, como por exemplo, controle de alguma variável metabólica (ex. glicemia, nível de insulina) havendo pouco sobre seu efeito a longo prazo.
No artigo do NEJM, duas práticas de jejum foram discutidas: o jejum diário de 18h concentrando a ingesta calórica nas outras 6h do dia; e o jejum semanal 2:5: em dois dias da semana restringe-se a ingesta calórica para 500Kcal/dia, nos outros cinco dias, ingesta normal.
A racionalidade da proposta do jejum intermitente. Nossos ancestrais na savana viviam num ritmo de jejum intermitente - não havia comida constantemente. A nós, humanos modernos, aquilo que é natural parece sempre evocar algo de bom (e que em algumas situações é verdade.Ocorre que na savana nossa sobrevida era de 30 anos, se muito, mas vamos lá).
Durante o jejum, o organismo troca a fonte de energia do metabolismo glicídico para o metabolismo lipídico, gerando corpos cetônicos como produtos desse metabolismo. Os corpos cetônicos, por sua vez, funcionam como potenciais moléculas sinalizadoras, alterando o metabolismo do corpo como um todo e promovendo mudanças que deixam o organismo mais resistente ao estresse oxidativo - ou seja, mais resistente a uma variedade de insultos.
Os experimentos em animais mostram resultados interessantes do jejum intermitente, prolongando sobrevida, atenuando doenças metabólicas (cardiovasculares, diabetes), neurodegenerativas e cânceres. No entanto, nem todos os experimentos em animais encontraram os mesmos resultados positivos, o que indica uma modulação possível do tipo de alimento, sexo, fatores genéticos e doenças prévias.
Em humanos, há evidências de que o jejum intermitente melhore desempenho físico e cognitivo sem perda de massa muscular: homens jovens submetidos a jejum intermitente por 2 meses e treino resistivo mantiveram massa muscular. Adultos em programa de restrição calórica por 12 -24 meses melhoraram sua memória, funções executoras e cognição global.
Aplicações clínicas: antes de mais nada, é necessário reforçar que a implementação do jejum intermitente necessita da participação de um profissional (nutrólogo, nutricionista) para garantir a restrição calórica sem restrição de nutrientes. E que sua implementação necessita de avaliações para mensuração dos efeitos desejados, como, por exemplo, melhora da resistência a insulina, melhora neurocognitiva em doenças neurodegenerativas (Alzheimer, Parkinson, AVC), melhora da inflamação asmática, na artrite reumatoide e até em cânceres.
Com intenção terapêutica (em situações de doença), minha opinião é que, em não havendo possíveis contraindicações para o jejum intermitente, no adulto, uma tentativa de uso dessa técnica para melhorar, por exemplo, a inflamação asmática ou a inflamação articular (ou mesmo a inflamação intersticial pulmonar?) é válida, contanto que se discuta com o paciente o nível de incerteza em volta das evidências que subsidiam a prática, a definição dos objetivos e a implementação correta. É o famoso: "isso não é para todos".
Possíveis contraindicações ao jejum intermitente não são discutidas no artigo, mas antevejo alguns cenários clínicos, em que o jejum intermitente pode ter um resultado líquido (net result) negativo, tendo em vista o impacto em outros sistemas:
1. Pacientes com doença péptica (úlceras, gastrite): estudo em ratos mostra o desenvolvimento de úlceras gástricas com jejum prolongado (de dias).
2. Pacientes em caquexia (perda de peso acelerada por doença): risco do jejum intermitente vulnerabilizar ainda mais esse paciente sob risco de desnutrição.
3. Pacientes com diabetes em uso de insulina: o desafio é maior na implementação do jejum, apesar de não ser impossível. Necessário pesar objetivos, custos e benefícios.
4. Pacientes muito magros com preocupação em relação à perda de massa magra.
5. Pacientes polimedicados com frequente ingesta de medicamentos
Alguma outra contraindicação? Se lembrarem de algo mais, por favor compartilhem. Outra dúvida: há algum impacto do jejum intermitente na saúde óssea (osteoporose)?
O artigo termina com orientações práticas sobre a implementação progressiva do jejum intermitente que podem ser vistas nessa tabela abaixo.
Meu entendimento acerca da publicação dessa revisão, inclusive com dicas de implementação em face a poucas evidências clínicas robustas é a seguinte: - existe extensa evidência embasando o racional do jejum intermitente (estudos pré-clínicos e estudos clínicos com desfechos substitutos ou pequenos estudos clínicos) para algumas condições clínicas.
- risco baixo, custo baixo (considerando a exclusão de pacientes com certas doenças, conforme exemplificado acima).
Caso o jejum intermitente seja radical demais para você, lembre que restrição calórica e manutenção de peso magro, exercício físico, alimentação antioxidante (rica em frutas, vegetais, evitando gorduras, etc.) têm enorme impacto positivo na saúde e longevidade sem as incertezas do jejum intermitente. Minha proposta é a de acompanhar os estudos que estão em andamento e ir atualizando a construção do conhecimento sobre a prática do jejum intermitente.
Referencia do artigo de revisão do NEJM:
N Engl J Med 2019; 381:2541-2551 DOI: 10.1056/NEJMra1905136
Declaração de conflitos de interesse: nenhum
As opiniões aqui expressas representam minha visão sobre o assunto.
Projeto Respira Evidência
Commentaires